Imersão no conflito de uma crença
Silêncio, o novo filme de Martin Scorsese (O Lobo de Wall Street, 2013) surge como uma obra provocadora para os fãs do cineasta, cinéfilos, críticos e os múltiplos personagens idiossincráticos de suas narrativas peculiares. Este trabalho, certamente, é um divisor de águas em sua carreira estética e de recepção, o que nos mostra um artista em movimento e pronto a correr riscos para além de sua trajetória. E que risco intrigante para se compartilhar!
É interessante analisar um filme com tão poucas indicações a premiações como este, ao levar em consideração a filmografia do diretor, que em sua maioria concorreram sempre em expressivas categorias. Premiações são expressões políticas de instituições, e não é de se surpreender que as mesmas, de alguma maneira, tenham sido provocadas pela temática do filme em seus morais. Silêncio ressignifica e expande o significado dessa palavra, explora forma x conteúdo em sua concretização cinematográfica.
A obra é uma adaptação do romance homônimo do escritor católico japonês Shusaku Endo (1913-1997). O mesmo livro já havia se transformado em filme nas mãos do cineasta japonês Masahiro Shinoda (Chimmoku, 1971), e sem dúvidas foi um material com que Scorsese lidou na construção de seu filme. O enredo conta a busca de dois jovens jesuítas, Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e Francisco Garupe (Adam Driver), pelo seu mentor - desaparecido há anos - Cristóvão Ferreira (Liam Neeson), em um Japão do século XVII perseguidor dos católicos. A dupla de jesuítas descobrirá em sua jornada uma realidade em conflito com a fé motivadora. E o desenvolvimento da crise dessa motivação e suas consequências é o que acompanhamos ao longo das 200 minutos de filme.
Em termos de roteiro, o filme já se inicia com a problemática para as personagens: a busca por Ferreira em um cenário nada amigável para tal ação, sendo eles o que são. Adentramos no objetivo das personagens e acompanhamos as suas desconstruções e ressignificações pouco a pouco do porquê fazem o que fazem. A narrativa intensa e lenta, o desenvolvimento de ritmo dilatado do conflito de Rodrigues, protagonista, ao contrário do dinamismo dos filmes de ação e da própria filmografia de Scorsese, traz o aprofundamento de uma estrutura épica.
E o épico se aprofunda pela fotografia com planos que parecem pinturas. O cuidado com o enquadramento, a construção da imagem e a profundidade de campo mostram o diálogo do diretor com o cinema oriental, sempre rico nesses quesitos para a contemplação. A cor mais fria e escura juntamente com a direção de arte e figurinos exploram a obscuridade e a secura do tema desenvolvido, “tempos obscuros” como diz o padre Ferreira em seu último relato no início do filme sob sua ótica cristã.
Uma das ousadias do filme e com pleno sentido é a ausência de trilha sonora. Decisão crítica para alguns, efetiva para outros. Às vezes, as trilhas em filmes - orquestradas ou não - servem mais como floreio ou redundância para uma sequência do que para mostrar uma camada valiosa. Aqui a escolha é justamente para se aprofundar no conflito e questionamentos que se colocam e são rasgados pelas imagens, ações e falas. A reflexão surge de como lidar e se colocar nesse mundo sob perspectivas conflituosas.
Quanto mais se passa o tempo no filme, a personagem de Garfield, Rodrigues, se parece com uma imagem do Jesus ocidental feita na Idade Média. Em certo momento, um diálogo do padre com seus opositores surge definidor das visões de cada um sobre o mundo. Eles dizem: “Todos sabemos que a árvore que floresce num tipo de terra pode apodrecer e morrer em outra.”.
Silêncio explora a arrogância do catolicismo e o coloca em xeque sua pretensão de expandir pelo mundo a "verdade”, em uma época continuada das colonizações. Instaura em Rodrigues a trajetória de um Cristo sofredor pela humanidade, que desaprende o egoísmo ao lidar consigo mesmo, fazendo a síntese das crenças no mundo e de como a realidade se instaura pelas práticas e especificidades de cada cultura - no caso a japonesa - com o Budismo e a natureza. As doutrinas possuem seus valores e sentidos ondem nascem e possam fecundar, não podem ser impostas.
O silêncio de Deus perante os atos humanos é o silêncio de si mesmo, ao não querer enxergar e lidar com a realidade com a força e mentalidade de que cada um é fundamental para a mudança do estado das coisas. Um filme que traz uma discussão atual com personagens em outra época. Ou seja, serve para mostrar que continuamos antigos em muitos pensamentos e de como se relacionar com eles.
O único ponto estranho do filme é em relação à língua pela qual as personagens se comunicam e praticam orações. Padres portugueses que falam em inglês (o que seria o português) e pouco de japonês no próprio Japão, pois os japoneses conseguem falar um pouco de inglês e entendê-los, e as orações em latim feitas pelos padres com sotaque de quem fala inglês. O cinema pode ter suas liberdades em relação às línguas e os contextos em que se passam as histórias, inglês na Roma e Grécia antigas, por exemplo. Esta questão fica um pouco truncada, merecia mais esmero, mas não tira a grandiosidade e o poder de discussão e provocação do filme.